Fabio Victor
Kits de robótica comprados há um ano e três meses por meio de contrato investigado por suspeita de corrupção continuam em caixas nas escolas municipais de União dos Palmares à espera de uso em salas de aula. O município de 65 mil habitantes, na zona da
mata alagoana, recebeu R$ 7,48 milhões do governo federal, na gestão Jair Bolsonaro (PL),
via emendas parlamentares de relator, para
adquirir os kits por meio de um programa do
FNDE (Fundo Nacional para o Desenvolvimento
da Educação) do MEC (Ministério da Educação).
A Polícia Federal, o TCU (Tribunal de Contas da
União) e a CGU (Controladoria-Geral da União)
investigam desvio de verba pública e
favorecimento a aliados do presidente da Câmara
dos Deputados, Arthur Lira (PP)
O valor destinado a União dos Palmares mais
conhecida por abrigar em seu território a Serra
da Barriga, onde funcionou o lendário Quilombo
dos Palmares foi o mais alto entre os
municípios alagoanos contemplados com o
programa no ano passado.
Quando o caso veio à luz, revelado pela Folha e
pela Agência Pública, os R$ 26 milhões liberados
a sete cidades alagoanas para compra dos kits
representavam 68% de tudo que havia sido pago
pelo FNDE para todo o país até então.
A Megalic, empresa de Maceió fornecedora dos
kits, pertence ao pai de um vereador do grupo
político de Lira, e vendeu ao governo os
equipamentos por um valor 420% mais alto do
que declarou ter pago por eles. Um assessor
direto de Lira foi alvo de mandado de busca e
apreensão da PF no caso.
A compra dos kits de robótica para a Prefeitura
de União dos Palmares foi realizada em março do
ano passado. O prefeito da cidade, Areski Freitas
Junior, o Kil (MDB), é aliado do presidente da
Câmara líder do centrão e um dos idealizadores
das emendas de relator, instrumento considerado
inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal
Federal).
Apesar de este tipo de dispositivo ocultar seu
autor, reportagem do jornal O Globo mostrou
que algumas emendas para kits de robótica em
municípios alagoanos, entre eles União dos
Palmares, foram indicadas por Lira.
A reportagem esteve na cidade no último dia 12
de junho, uma segunda-feira, e visitou três
escolas municipais, entre elas as duas maiores.
Na João Costa de Oliveira, que atende a 1.200
alunos do ensino fundamental e EJA (Educação
de Jovens e Adultos), sendo 700 do 6º ao 9º ano,
há uma sala nova destinada a laboratório de
ciências e aulas de robótica, e é nela que estão
empilhadas as caixas da Megalic, onde se lê, ao
lado do nome da empresa, o slogan "Eu faço
robôs".
É uma situação semelhante à da Jairo Correia, só
que nesta as caixas repousam fechadas no canto
de uma sala que tem sido utilizada para outras
atividades. A escola, com 1.115 alunos, recebeu 50
kits de robótica, a serem usados por 545
estudantes do 6º ao 9º ano (fundamental 2, a fase
à qual a prefeitura pretende destinar os
equipamentos).
Já a escola rural Maria Mariá de Castro Sarmento,
no povoado de Santa Fé, que tem ao todo 400
alunos, recebeu 18 kits. Ao menos um deles
estava aberto, e professores já haviam recebido a
capacitação para utilizá-los.
A Prefeitura de União dos Palmares diz ter
recebido ao todo 460 kits de robótica para suas
27 escolas e 4.200 alunos do fundamental 2,
incluindo material de apoio para treinamento. A
capacitação, diz o município, foi realizada em
março, e os kits serão enfim usados em sala de
aula no começo de julho, na volta do recesso
iniciado nesta segunda (19).
As três escolas estavam limpas e organizadas
durante as visitas, que não foram agendadas.
Apresentam carências típicas do interior pobre
do Brasil. Há internet, mas o sinal pode ser fraco
e/ou intermitente, e os alunos não possuem
computadores os poucos disponíveis ficam com
professores e coordenadores.
Na zona rural, a escassez é maior telefone
celular é artigo mais raro, há famílias que não os
possuem, ou que compartilham um aparelho
entre vários integrantes.
Vigora nas escolas uma grande expectativa para
começar a usar a robótica. "Os alunos estão
ansiosos, cobram, perguntam: e aí, professor,
quando é?", conta Pedro Marcelo, que leciona
matemática na Maria Mariá.
Mestres e gestores afirmam não ter controle
sobre a forma como os kits foram comprados e
que, uma vez nas escolas, eles devem ser usados
da melhor maneira possível. "Para nós, o
importante é que o material chegou", disse
Suzete Galdino, diretora da Jairo Correia.
Kit de robótica segue na caixa em reduto de Lira
DINHEIRO RETIDO
O secretário de educação de União dos Palmares,
Petrúcio Wanderley (que acumula a chefia da
Saúde), disse que o processo foi idôneo por parte
da prefeitura e que a demora se deveu à necessidade de um treinamento à altura da
ambição da cidade.
"Estamos melhorando nossa educação e
queremos avançar mais com tecnologia". Ao lado
dele na entrevista, o procurador do município,
Allan Belarmino, alegou que, na verdade, após as
suspeitas sobre o processo, pediu para aguardar
orientações dos órgãos de controle.
Ambos informaram que, embora União tenha
recebido os kits, a Megalic não recebeu ainda
nenhum tostão dos R$ 7,48 milhões cobrados
pelos equipamentos.
O TCU suspendeu os repasses, mas autorizou o
pagamento de produtos comprovadamente
entregues até 20 de abril de 2022 (caso de União
dos Palmares). Após recurso da Megalic à Justiça
Federal, entretanto, esta confirmou a suspensão
e determinou o depósito judicial dos valores.
No final de abril, o TCU apontou várias
irregularidades no processo, como falta de
informações sobre a composição do preço e
indícios de sobrepreço.
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Antes de virar titular das duas principais pastas
de União dos Palmares, Petrúcio Wanderley havia
sido secretário nas prefeituras de Atalaia e de
Delmiro Gouveia. "Sou um técnico. Estou muito
calmo." Um portal de notícias alagoano publicou
que Wanderley é "o homem de confiança" de
Arthur Lira na região. O secretário diz que é de
intriga da oposição.
O procurador Belarmino se queixou de
preconceito da mídia do centro-sul do país. "O
que mais me chateia é [veículos de imprensa]
ressaltarem que Alagoas foi quem mais recebeu.
Mas ninguém pergunta: Alagoas, que é um estado
pobre, não precisa desses recursos".
A Megalic nega irregularidades. Afirma que é
apta para a construção dos kits e refuta ter
havido sobrepreço, alegando que a reportagem
da Folha que originou a investigação comparou
indevidamente seus produtos com kits de
qualidade inferior.
Em nota, o advogado Eugênio Aragão declarou
haver "grave equívoco" nas suspeitas e que todos
os contratos se deram a partir de parâmetros
técnicos do MEC e do FNDE.
Arthur Lira afirmou defender "emendas
parlamentares que levam benefícios para todo o
Brasil e toda a população" e disse que não tem
"absolutamente nada a ver com o que está
acontecendo; cada um é responsável pelo seu
CPF".
ALIANÇA AMPLA
O episódio dos kits de robótica expõe a
peculiaridade dos arranjos políticos locais. O
prefeito Kil é do MDB, partido controlado em
Alagoas pelo senador Renan Calheiros, inimigo
figadal de Arthur Lira. Na última eleição, Kil fez
campanha para ambos (e para Renan Filho ao
Senado, Paulo Dantas ao governo estadual e Lula
à Presidência).
Em relação a Lira, em julho de 2021, Kil publicou
numa rede social uma visita ao deputado em
Brasília e contou ter tratado sobre "um reforço
importante na educação dos nossos alunos da
rede pública com instrumentos de robótica".
Numa visita a União dos Palmares em março do
ano passado para a inauguração de um parque
agrícola, o chefe da Câmara foi recebido com
faixas de "Obrigado, presidente Arthur Lira",
celebrou a parceria com a prefeitura e ouviu
elogios rasgados. Numa entrevista no mesmo
evento, o prefeito citou o programa de robótica
entre as ações de Lira para o município.
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